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Crise dos 40 tem a ver com classe social?

OUT 23, 2022

Leonardo Neiva - UOL. Confira matéria original aqui.



Qual é a sua crise? Geralmente associada à classe média, crise da meia-idade atinge a periferia com falta de estabilidade financeira e perspectiva de envelhecimento sofrido.


Quatro quarentões desiludidos com a vida que levam, seja por problemas familiares, financeiros ou amorosos, decidem largar tudo e sair pelo país de moto, buscando reviver uma aventura sonhada na juventude. A frase resume o enredo do filme “Motoqueiros Selvagens” (2007), uma esquecida comédia americana que, se nunca passou na Sessão da Tarde, sem dúvida se encaixaria perfeitamente na programação.


Mais do que isso, no entanto, a ideia de indivíduos de classe média insatisfeitos que realizam um sonho de adolescência na tentativa de superar um cotidiano entediante descreve quase com perfeição a forma como imaginamos hoje uma crise da meia-idade. Claro que, dentro do clichê, há uma série de variações possíveis, desde separações até casos extraconjugais, de reunir coragem para pedir um aumento a mudar radicalmente de profissão.


A maior parte dessas fantasias, porém, tem um denominador comum: o poder da escolha. Ou seja, a possibilidade de deixar o trabalho, largar o parceiro ou mesmo comprar um veículo. Isso porque a mitologia em torno da crise, cuja existência ainda não foi comprovada pela psicologia, costuma estar centrada nas classes média e alta, posições onde é possível se dar ao luxo de avaliar as alternativas e mudar sem se preocupar em cair na miséria por isso. E esse tipo de visão vem afetando até mesmo estudiosos e pesquisadores.


Um grupo de economistas chegou recentemente à conclusão de que a crise da meia-idade, geralmente vista como folclórica, existe sim na vida real. A pesquisa com mais de 500 mil pessoas apontou que, por volta dos 40 anos de idade, os indivíduos tendem a sofrer mais com depressão, têm dificuldade para dormir, se sentem sobrecarregados na vida pessoal e cansados de suas carreiras profissionais. O problema é que o estudo abarca apenas países desenvolvidos, como França, Estados Unidos e Espanha.


“Na meia-idade, pessoas de classe média ou alta passam por um momento onde não lidam mais com questões estruturais. Elas geralmente têm uma vida estável”, afirma a psicanalista Ana Carolina Barros. “Por isso, começam a tratar de questões secundárias, os desdobramentos dessa estabilidade. É isso que costumamos chamar de crise.”


Para as pessoas de classes mais baixas, fica uma sensação de atraso, fracasso, inferioridade


À frente da organização Casa de Marias, em São Paulo, Barros lidera uma equipe de psicoterapeutas negras que acolhem pacientes vindos da periferia, abordando no tratamento questões relativas a classe, gênero, raça e território. Baseada em sua experiência profissional, ela aponta que a crise existe também para representantes das classes sociais mais baixas nessa faixa etária, mas com características muito diversas.


“Para essas pessoas, o processo de estabilização e consolidação da vida é mais demorado, tenso e muitas vezes nem chega a acontecer”, afirma. Ou seja, mesmo após décadas de esforço e trabalho, muitos não conseguem alcançar uma estabilidade financeira e social quando alcançam os 40, seja por falta de estudos ou de uma rede de proteção social que é comum nas classes mais altas. “Fica uma sensação de atraso ou fracasso, de inferioridade e dificuldade de alcançar uma meta na vida”, frisa a psicanalista. Segundo ela, o principal desafio nessa faixa etária é olhar de frente o fato de não ter alcançado os parâmetros impostos pela sociedade: ter um emprego com renda fixa, ser estável financeiramente e possuir carro e casa próprios.


Sob pressão

Um estudo mais antigo, mas também mais abrangente — foram analisados dois milhões de indivíduos em 80 países — apontou que a crise da meia-idade seria universal. De acordo com os professores de economia David Blanchflower e Andrew Oswald, da universidade americana de Dartmouth, a vida de todo ser humano pode ser colocada numa curva em formato de U. Se a infância e a velhice representam os períodos de maior bem-estar, os 40 anos indicam, por assim dizer, o fundo do poço em termos de sofrimento mental.


Como afirma a psicóloga social Vera Rita Ferreira, uma das explicações para os índices de infelicidade nessa faixa etária pode estar na pressão dupla despejada sobre a atual geração de adultos. Se, por um lado, as pessoas vêm tendo filhos cada vez mais tarde, por outro, também vivem mais. Portanto, aos 40, talvez tenham que equilibrar os cuidados e gastos dedicados aos filhos pequenos com a necessidade de ajudar numa velhice mais digna e confortável para os pais, diz Ferreira, que é especialista em psicologia econômica e presidente da Iarep (Associação Internacional de Pesquisa em Psicologia Econômica).


A exaustão profissional acaba gerando questionamentos sobre a necessidade de tanto trabalho e produtividade


“Muita gente está sobrecarregada e começa a ter problemas de saúde mais cedo, porque a alimentação é cada vez pior e a carga de trabalho, maior”, aponta a psicóloga. Segundo ela, essa falta de tempo e energia também vem prejudicando os padrões de sono e exercícios. “Essa geração tinha a ilusão de que bastava fazer uma boa faculdade, e a recompensa seria um emprego estável com um bom salário. Hoje a gente vê que não é nada disso.”


O mesmo estudo já citado aqui, feito por economistas que analisaram habitantes de países desenvolvidos, também chegou à conclusão de que o estresse no trabalho atinge seu ápice aos 45 anos, quando uma pessoa geralmente adquire o máximo de obrigações e responsabilidades na carreira. Esse estresse, aliás, pode indicar problemas como pressão alta e depressão. A isso, Ferreira acrescenta tendências como a “uberização” do trabalho, em que temos visto não só jovens, mas também adultos, em muitos casos com uma carreira profissional consolidada, se tornando motoristas de aplicativo ou abrindo um negócio próprio não por desejo ou vocação, mas por falta de alternativa.


O hamster em sua roda

Para o sociólogo Elton Corbanezi, autor do livro “Saúde Mental, Depressão e Capitalismo” (Unesp, 2021), a incessante busca por produtividade no capitalismo acaba levando muita gente a uma intoxicação psicológica, gerando quadros de ansiedade e burnout. “Assim como o capitalismo predatório e extrativista, dá para estender esse pensamento para a relação do indivíduo consigo mesmo, numa autoexploração exagerada.” Fazendo paralelo com a figura de um “hamster correndo sozinho em sua roda”, segundo o sociólogo, a exaustão profissional acaba gerando questionamentos sobre a necessidade de tanto trabalho e produtividade.


Nesse estado de coisas, diz Corbanezi, as expectativas da meia-idade em relação ao envelhecimento em pessoas mais pobres dão à luz angústias adicionais, relacionadas à escassez econômica e falta de acesso a serviços básicos como saúde e moradia. Aliado a uma crise econômica e política prolongada, com altos índices de inflação e um mercado de trabalho precário, há uma queda ainda mais significativa na qualidade de vida, o que impacta a saúde mental, afirma o pesquisador.


Ferreira indica ainda que a janela de acumulação de patrimônio vem diminuindo nas últimas décadas, o que dificulta ainda mais a estabilização financeira. Ao mesmo tempo, as demandas de consumo e sobrevivência não reduziram seu ritmo. Pelo contrário, até aumentaram. “No planejamento financeiro, existe um momento super bonitinho na teoria, que é a fase de acumulação de patrimônio, mas nesse ponto também tem gente absurdamente endividada. Em vez de acumular, não consegue nem botar comida na mesa ou pagar o aluguel”, destaca a especialista.


Pagando a conta

Na hora de gastar, as pessoas de 40 anos que têm condições financeiras costumam perceber que reservam pouco tempo para si mesmas e passam a buscar produtos e serviços que preencham esse vazio, diz a consultora e antropóloga especializada em consumo Hilaine Yaccoub. “Fazem cursos e até investem em hobbies que podem acabar virando uma profissão. Vejo gente mudando de uma casa grande para um apartamento pequeno, porque sobra mais dinheiro para viajar e ir a restaurantes”, conta.


Segundo a especialista, hoje a velhice está muito atrelada à ideia de precisar de cuidados. Como os representantes dessa faixa etária é que estão cuidando de seus pais, não sentem que ficaram velhos. “São jovens, ousados e ligados ao consumo de experiências.” Nesse caso, alguns clichês ainda prevalecem. Enquanto muitos homens aproveitam o dinheiro que não gastam mais com os filhos para adquirir um hobby, como cozinhar aos finais de semana ou andar de Harley-Davidson, algumas mulheres, além de gastar em viagens, costumam buscar tratamentos estéticos ou atualizar o guarda-roupa, na busca por retardar o envelhecimento físico, diz Yaccoub.


A crise, no entanto, vem freando esse movimento tanto nas classes mais baixas quanto em parte da classe média, de acordo com a consultora. Portanto, muita gente estaria deixando de viajar ou fazer o que lhe dá prazer neste momento pelo medo de perder o emprego e não conseguir arcar com as responsabilidades financeiras dentro da família.


A casa dos pais

Envelhecer pode ser um desafio ainda maior dependendo da sua raça e gênero. Além de lidar com questões como racismo e a desigualdade social, a população negra também tende a sofrer mais com problemas de saúde que podem afetar inclusive a saúde mental. “É uma crise alicerçada nas nossas desigualdades econômicas, sociais e territoriais, que vai produzir uma série de dores, sintomas e instabilidade emocional”, afirma Ana Carolina Barros, da Casa de Marias.


São crises que se dão por causas e em situações diferentes, e têm a ver com todo um contexto social que contribui para isso


Também é comum, segundo ela, atender na clínica pessoas negras e periféricas que ainda vivem com os pais aos 40 anos — mais uma vez, não por escolha, como numa tendência que vem sendo apontada com frequência atualmente, mas por necessidade. Como a psicóloga aponta, fica cada vez mais difícil sair de casa devido aos salários precarizados e aos preços de imóveis e aluguéis cada vez mais altos.


“Aquele é o único imóvel que a família tem, ou pode ser até alugado e precisar de mais de uma renda para sustentar.” Exemplos como esse, ela diz, tiram a privacidade do indivíduo, influenciando na vida pessoal, social e na capacidade de viver relacionamentos mais prolongados. “São crises que se dão por causas e em situações diferentes, e têm a ver com todo um contexto social que contribui para isso”, afirma.


A crise e as mulheres

Decepcionada com os rumos que seu trabalho como professora e dramaturga tomaram, uma mulher prestes a completar 40 anos decide mudar radicalmente de carreira, assumindo um sonho antigo de virar rapper. Baseado na experiência da própria diretora e roteirista Radha Blank, “Rapper aos 40” (2020) é um dos raros filmes a lidar com a crise da meia-idade pelo ponto de vista de uma mulher negra. No entanto, na vida real, muitas vezes o fardo pode ser bem mais pesado para elas quando passam por essa fase.


Dentro da realidade brasileira, o abandono paterno acontece com frequência e inclusive aumentou durante a pandemia. “Esse é um momento ainda mais complicado para as mães solo”, destaca Ferreira. Para a psicóloga econômica, além da sobrecarga que recai sobre a mulher que é mãe, e muitas vezes também o único pilar financeiro da família, a faixa etária ainda coincide com a chegada da menopausa [que no geral acontece dos 45 aos 55 anos], que traz consigo sintomas como insônia, ansiedade, irritação e depressão, contribuindo para uma queda ainda maior nos índices de saúde mental. “É um momento em que as pessoas veem suas forças começarem a diminuir, assim como a forma física e a juventude.”


Até quando é desejada, a maternidade pode ser um sonho frustrado


Enquanto para os homens a expectativa geralmente vem pela posição de provedor do lar, o que gera uma demanda por estabilidade financeira, por aqui as mulheres ainda são culturalmente associadas aos cuidados com a família. Por isso, boa parte da pressão social vem por esse lado, diz Barros. “Até quando é desejada, a maternidade pode ser um sonho frustrado, porque as condições para que ela se concretize são desfavoráveis”, declara. Assim, afirma a psicóloga, é comum que mulheres negras estejam lidando nessa faixa etária com a impossibilidade de realizar seus sonhos profissionais e sociais, o que se desdobran em muito sofrimento e diagnósticos como depressão e ansiedade.


Todo esse cenário fica ainda mais complexo quando se pensa no estigma que existe sobre os cuidados com saúde mental na periferia e a dificuldade de acesso a tratamentos. “Nunca foi dado para elas o direito de se cuidar e olhar para a questão psicológica ou mesmo ter um atendimento público de qualidade”, diz Barros. Em meio às urgências cotidianas e às demandas de sobrevivência, a saúde mental acaba relegada ao segundo plano ou sendo vista como besteira. “Na clínica, nosso primeiro trabalho é desfazer essa imagem até a pessoa entender que tem valor e merece ser cuidada”, conta a psicóloga da Casa de Marias. “Com pessoas negras e periféricas, você precisa mostrar que dá para ocupar esse lugar e se reconectar com o sentido de humanidade.”

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