top of page
Foto do escritorkoala hub

Envelhecer com qualidade de vida

AGO 27, 2022

Felipe Uhr - Correio do Povo. Confira matéria original aqui.


Foto: Ricardo Giusti


'Envelhecer é bom, morrer cedo é que não presta'


Ninguém quer envelhecer, mas também ninguém quer morrer novo. A famosa frase consagrada nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano, é um dos dilemas na nossa sociedade. Afinal, o que representa o envelhecimento? Como envelhecer com qualidade? Para responder essas e outras questões a respeito deste tema, o Correio do Povo entrevistou o médico gerontólogo Alexandre Kalache , presidente do Centro internacional da Longevidade (International Longevity Centre, ILC Brazil) e co-diretor do Age Friendly Institute, baseado em Boston (EUA). Especialista em envelhecimento, possui mestrado em Saúde Pública pela Universidade de Londres e doutorado pela Universidade de Oxford, onde trabalhou entre 1975 e 1995, como pesquisador sênior. Fundou a Unidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres, onde também criou o primeiro Mestrado em Promoção da Saúde da Europa. De 1995 a 2008 foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da OMS em Genebra. Nesse período concebeu e publicou, em 2002, o Marco Político do Envelhecimento Ativo e, posteriormente, a iniciativa Cidades Amigas do Idoso em 2005.

Ao longo das décadas, o conceito de velhice, em termos de faixa etária, mudou, assim como a expectativa de vida. Quais são as observações do senhor sobre esses aspectos? A primeira observação é que estamos vivendo uma revolução da longevidade. Se você pegar a expectativa de vida mais alta que tínhamos no mundo em 1900, era a da Alemanha, com 46 anos de vida. Cem anos depois, em 2000, nenhum país, nem os mais pobres da África tinham uma expectativa abaixo do que se tinha há cem anos. É revolucionário. Revolução é o que acontece em uma sociedade quando, a partir dali, ela não volta a ser a mesma. Ao longo do século passado a revolução da longevidade permitiu que as pessoas pudessem viver muito mais. Eu sou um exemplo. Eu nasci em 1945, com uma expectativa de vida de 43 anos. Um bebê que nasça hoje no Brasil espera viver 77, no Rio Grande do Sul, onde se tem a maior expectativa de vida do Brasil, vai além disso. Então é fantástico. Envelhecer é bom, morrer cedo é que não presta. Essa é a primeira mensagem. Estamos vivendo mais, temos que celebrar, mas a sociedade encara o envelhecimento como um problema, um fardo. A gente viu isso durante a pandemia. Nós temos que mudar a atitude para encarar o envelhecimento pelo que é: uma revolução positiva. Mas o que foi a grande conquista dos últimos cem anos, passa a ser um grande desafio. O que fazer? Que políticas precisamos no setor público? Como as empresas têm que responder à revolução da longevidade? Na essência, esse é o meu trabalho como médico gerontólogo. O que representa o aumento da população idosa? Há preocupação nisso? É preocupante sobretudo em um país que está na contramão do que aconteceu nos países desenvolvidos, que são os mais envelhecidos. Esses países primeiro enriqueceram para depois envelhecerem. Ou seja, eles tinham a casa em ordem. Os grandes desafios, como saúde pública, ensino público, meio ambiente, trabalho digno e seguridade social foram empregados pouco a pouco, porque os países foram envelhecendo lentamente. Um exemplo, na França foram necessários 145 anos para dobrar a proporção de idosos com mais de 60 anos, de 10% para 20%. O Brasil vai fazê-lo em 19 anos, entre 2011 em 2030. E a França não só envelheceu paulatinamente como era um país rico, no século XIX e ao longo do século XX. Eles foram absorvendo e substituindo o cuidado familiar, aquela família que tinha poucos idosos e muitos filhos e netos para poder cuidar deles. E outra coisa, a medicina deu saltos de qualidade imensos. Há cem anos, se você tivesse câncer, diabetes, derrame, tinha muito pouco a fazer e a morte vinha rápido. Hoje você vai sobreviver a essas doenças que são comuns com o envelhecimento por conta dos avanços tecnológicos na saúde por muito mais tempo, mas não necessariamente envelhecendo bem. Você pode ter um derrame e durante 30 anos ficar com problema de fala, de comunicação e alguém ter que cuidar de você. Como não temos os recursos que a França tem, nós acabamos sobrecarregando uma família que é vulnerável, que está abaixo da renda média do país. Envelhecer com qualidade é um desafio? É um imenso desafio. Para você envelhecer bem é preciso quatro pilares. O primeiro é ter um grau de saúde adequado. À medida que você envelhece, o risco de ter doenças crônicas aumenta e, em grande parte, isso é por conta de estilos de vida pouco saudáveis. Aumento de peso, aumento do colesterol, você não se alimenta bem, até porque a dieta saudável não é necessariamente a mais barata, simples e acessível. Você já tem um problema que vai sobrecarregar seu coração, suas articulações, vai hipertensão, diabetes. A obesidade mata. O brasileiro está se alimentando muito mal. É a má nutrição não no sentido da subnutrição. Nós temos o pior dos dois mundos, temos pessoas subnutridas porque não conseguem comer. O país voltou ao mapa da fome, temos 31 milhões de famílias famintas, que fazem sopa de osso. Somos um país que alimenta os porcos da China porque é uma potência agro, mas que não consegue alimentar bem sua própria população. E você tem, ao lado do subnutrido, os super nutridos, pessoas que estão consumindo, por serem mais baratos, alimentos que engordam mas que não são nutritivos. Eu chamo de dieta branca: muita farinha, arroz, açúcar, sal e gordura. A gente diz para comer brócolis, mas se comer brócolis na primeira semana do mês, não vai sobrar para comprar farinha e açúcar na última. É uma situação complicada porque é um país que envelhece com pobreza e muita desigualdade. O primeiro pilar é a saúde, com SUS adequado, porque 83% dessas pessoas com mais de 60 anos dependem exclusivamente dos serviços públicos. Os planos de saúde estão inacessíveis para as pessoas mais velhas, você é castigado porque envelheceu. Você paga o plano de saúde enquanto é mais jovem e depois, quando mais precisa, não consegue pagar. O segundo pilar é a aprendizagem. Estamos vivendo uma velocidade tecnológica transcendental, a velocidade dos conhecimentos é tal que a gente tem que fazer um esforço muito grande para continuar com o conhecimento. Aprender a aprender, porque a gente sabe hoje que 60% dos jovens com menos de 15 anos vão exercer ocupações que ainda não existem e você não pode treinar alguém sem saber o que ele vai fazer.

O terceiro pilar é ter direito a participar da sociedade. Vivemos em uma sociedade muito idadista, com muito preconceito ao idoso. Experimenta perder seu emprego com 43 anos, você já vai ser considerado muito velho. E tem gente que precisa aos 50, aos 60, e que precisa ter o direito de continuar a trabalhar para complementar sua renda, para poder se alimentar, às vezes para ser mais um recurso para toda família. Participação pressupõe ter direitos.

O último pilar é segurança e proteção. A pior coisa é envelhecer sentindo-se negligenciado, sem um teto, sem comida, sem o mínimo de dinheiro para comprar os remédios quando você fica doente. Esses são os quatro pilares do que eu chamo de envelhecimento ativo, uma ideologia que lancei quando era diretor da Organização Mundial da Saúde, do Departamento de Envelhecimento e Saúde, entre 1994 e 2008.

O senhor fala de preparar-se para o futuro porque não houve preparação no passado. Também na questão das políticas públicas? Sim, com certeza. Mas isso antes era até desculpável. Quando eu fazia faculdade de medicina, apenas 4%, 5% da população tinha mais de 60 anos, hoje são 15%, daqui 30 anos serão 30%. As pessoas têm que se preparar para o envelhecimento o mais cedo possível, mas o Estado tem que se preparar para esse fenômeno demográfico, essa revolução, e não está fazendo. Qual deve ser a relação do ente público com público idoso? O setor público depende de pessoas. Essas pessoas são chamadas de políticos ou governantes, que não tem um compromisso com a questão do envelhecimento. Basta você olhar as plataformas dos partidos políticos que vão disputar as eleições. Eles acham que o envelhecimento é um problema para amanhã, não é imediato, não dá voto. Daqui há quatro anos todo mundo esquece. Está ruim para todo mundo e nós tivemos outra década perdida em termos de desenvolvimento econômico. Isso não é uma receita para envelhecer bem porque fica todo mundo assustado. Segundo, o cuidado é fundamental, temos que implementar a cultura do cuidado e o Estado joga para a família essa questão como se não tivesse nada a ver com isso. Você tem que minimizar a tarefa hercúlea dos cuidadores, usando um eufemismo, das cuidadoras, são as mulheres que hoje têm que trabalhar e ajudar na renda das famílias e continuar cuidando de famílias cada dia mais verticais. Antigamente as famílias eram horizontais, você tinha poucos velhos, muitos filhos e netos. Hoje você tem a avó, a bisavó, a mãe e a neta, verticalizou e fica tudo na mão, quase tudo, na mão da mulher.

A gente viu isso na pandemia, fora as pessoas que morreram, as pessoas que mais sofreram foram as mulheres, que foram as primeiras a perderem o emprego, entraram na informalidade, tinham que cuidar dos filhos e netos que estavam em casa, tinham que cuidar dos idosos. O homem participa muito menos do cuidado, isso é outra coisa que nós temos que mudar na nossa cultura. O Estado está negligenciando um fenômeno demográfico de consequências para o resto do século. Hoje o Brasil tem 15% de pessoas com mais de 60 anos, no Rio Grande do Sul mais de 17%. No ano de 2050, teremos o dobro, 30%. Então as próximas décadas são fundamentais para que nós tenhamos políticas implementadas que garantam o mínimo de qualidade de vida na medida em que envelhecem. Tenho exemplos concretos sobre o papel do Estado e de como isso pode ajudar muito, ou atrapalhar bastante. Em 2008, quando deixei a OMS, fui para Nova Iorque trabalhar na Academia de Medicina de Nova Iorque com o objetivo principal de lá implementar o projeto Cidades Amigas das Pessoas Idosas. Tal projeto eu havia lançado em 2007, ainda como diretor do Departamento de Envelhecimento da OMS, baseado na ideologia do Envelhecimento Ativo.

Por que a cidade? As duas grandes tendências demográficas do século XXI são envelhecimento de um lado e urbanização do outro. É preciso preparar as cidades onde, de forma crescente, as pessoas vão envelhecer. Em 2005 fizemos um projeto piloto em Copacabana, onde nasci e me criei, o bairro mais envelhecido do Brasil. Os resultados eu apresentei em 2005 no Congresso Internacional de Gerontologia, o que despertou grande interesse de várias cidades mundo afora. Amarramos bem a metodologia do estudo-piloto com apoio do governo canadense (resultando no Protocolo de Vancouver). Daí, fizemos o estudo em paralelo em 35 cidades e com os resultados lançamos, em outubro de 2007, o guia da OMS para Cidades Amigas das Pessoas Idosas. O programa é hoje aplicado por mais de 3 mil cidades, tendo os governos locais sempre um papel fundamental. Mas é preciso também envolver a sociedade civil, o setor privado e o acadêmico, para que tudo saia direitinho. Aqui no Brasil são poucas as cidades que estão fazendo a sério projetos para criar cidades mais amigas das pessoas idosas. Veranópolis foi por onde começamos, em parceria com o governo municipal, o Conselho dos Idosos, o Instituto Moriguchi (acadêmico) e a CPFL patrocinando. Deu certo. Na primeira semana de agosto chegamos ao final do projeto em Gramado e estamos partindo para Guaporé e Bento Gonçalves. O curioso é que Porto Alegre ganhou o selo de Cidade Amiga do Idoso da OMS , mas, a todo mundo que pergunto, ninguém está sabendo, isso é ruim, muito ruim. O senhor fala de preparar-se para o futuro porque não houve uma preparação no passado, também na questão das políticas públicas? Sim, com certeza. Mas isso antes era até desculpável. Quando eu fazia faculdade de medicina, apenas 4%, 5% da população tinha mais de 60 anos, hoje são 15%, daqui 30 anos serão 30%. As pessoas têm que se preparar para o envelhecimento o mais cedo possível, mas o Estado tem que se preparar para esse fenômeno demográfico, essa revolução, e não está fazendo. Como eu disse, você olha nas plataformas políticas dos partidos e não encontra a palavra envelhecimento.

O senhor já falou um pouco, mas para aprofundarmos, o que mudou para as pessoas idosas agora em relação há décadas atrás? A cultura passada é de que o velho deveria ficar quieto no seu canto, fazendo tricô, sentado na cadeira de balanço e lendo o jornal. Sempre tinha alguém mais jovem que dizia: ‘não faz esse esforço, deixa que eu faço’. E hoje a cultura que a gente quer ver implementada é deixar essa coisa de que o velho não serve para nada para a de um envelhecimento ativo. Eu dou um exemplo do vernáculo, quando traduziram para o português do alemão a palavra seguridade social, onde surgiu, com Bismark em 1881, a aposentadoria por idade. O que ele fez, muito esperto, como ministro da Alemanha? Ele olhou para o chão de fábrica e viu que havia poucos velhos, que recebiam salários integrais e não tinham mais a mesma produtividade. Ele então mandou eles para casa e deu uma aposentadoria baixa para eles viverem o resto dos anos, dois ou três. Essas pessoas iam para casa e dois ou três anos depois essas pessoas morriam. Hoje é muito diferente. As pessoas vivem mais do que viviam anos atrás porque a medicina evoluiu, você tem uma medicina que pode e permite o diagnóstico precoce de um problema cardiovascular ou de um câncer. E você tem intervenções para tratar com eficácia esses problemas que antes matavam rapidamente. Eu como médico formado em 1970, vejo hoje ultrassom, cirurgias com laser. Você faz uma cirurgia de catarata e manda a pessoa para casa uma hora depois. No meu tempo de estudante isso era ficção científica. Essa mudança tecnológica que permite a gente viver mais e bem deve estar ao alcance da maioria das pessoas. No Brasil, como eu disse, 83% das pessoas dependem do SUS, que está combalido e precarizado. Houve um congelamento dos gastos sociais em 2017 que está tendo efeito agora. Não há investimento no setor de saúde e quem está sentindo isso são os muito velhos e os muitos jovens. Como o senhor avalia os efeitos da pandemia para a população idosa? A pandemia foi uma tragédia que poderia ter sido evitada ou minimizada. O vírus existiu e alcançou o mundo rapidamente, mas ele teve no Brasil um impacto muito pior que na imensa maioria dos países. Nós não tivemos pensamento científico. Nos falta letramento científico, sobretudo das autoridades que deveriam estar atuando o mais rápido possível em dois aspectos. Primeiro em aparelhar os hospitais, para que pudessem dar conta antes da vacina chegar. As pessoas estavam ficando doentes e se você não tivesse um plano de saúde muito bom, acabava morrendo na periferia por falta de oxigênio. As pessoas morreram asfixiadas. Por exemplo, no meu estado, no Rio de Janeiro, tem um parque hospitalar imenso, muitos hospitais ociosos. Poderiam ter aparelhado esses hospitais rapidamente para dar conta daquela massa de pessoas gravemente enfermas. Ao invés disso, os políticos resolveram construir sete hospitais de campanha. Só um funcionou por dois meses. Mas o hospital de campanha dá oportunidade para a corrupção. Infelizmente a pandemia deflagrou o que a gente já conhecia. Primeiro, as desigualdades sociais, porque quem mais morreu foram os mais pobres, os negros, os indígenas, os quilombolas. Se você pegar o mapa de São Paulo, os bairros mais ricos tiveram uma mortalidade muito menor que na periferia, quatro cinco vezes mais alta. O segundo erro foi de vacilos na hora de comprar a vacina. Ela já estava disponível, estava sendo oferecida, tínhamos capacidade inclusive de fabricá-las e demorou-se. E você vê hoje que a pandemia está no seu final por causa das vacinas. Elas tiveram um efeito esperado cientificamente. Elas são seguras, deveriam ter sido oferecidas mais rapidamente e foi por isso que nós acumulamos quase 700 mil mortos, segundo país com mais mortos, só atrás do Estados Unidos, onde as mesmas decisões ocorreram, decisões políticas inadequadas. Tem um terceiro componente: as pessoas não receberam empatia e solidariedade. As pessoas foram morrendo, desamparadas. Nós não ouvimos as palavras adequadas.

Qual o recado que o senhor tem para quem tem medo de envelhecer? Envelhecer é bom. Aproveite os anos que lhe foram dados porque, ao longo da história, as civilizações estavam em busca da fonte da eterna juventude. Ela não é eterna, mas o fato de que estamos vivendo muito mais do que antes é muito positivo. Então, aproveite, mas aproveite cultivando hábitos e estilos de vida saudáveis e brigando para ter seus direitos respeitados.

2 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page