OUT 23, 2022
Juliana Gai - Jornal de Brasília. Confira matéria original aqui.
É comum que os seres humanos empreendam buscas espirituais para encontrar uma explicação plausível e compreender melhor o início e o fim da vida, assim como os fenômenos que acontecem entre um e outro
Foto: Tima Miroshichenko/Pexels/Divulgação
Olá, leitores! Vou falar hoje sobre um assunto delicado e muito individual, que tem tempo e jeito próprios de acontecer e que deve ser respeitado profundamente tamanha a sua significância: a busca de explicações sobrenaturais para os fatos da vida, ou seja, a nossa espiritualidade.
Ao longo da vida, em muitos momentos, é normal tentarmos explicar o, supostamente, inexplicável que nos acontece, como uma gravidez inesperada em idade avançada, ganhar na loteria ou encontrar o amor da sua vida num aeroporto, graças a um vôo cancelado. Raras são as vezes em que refletimos racionalmente sobre as chances reais disto tudo acontecer, embora, estatisticamente, havia sim chances reais de ocorrência. É mais comum usarmos frases do tipo “era para ser”, “era a hora”, “estava escrito”, “coisa do destino” ou, ainda, “foi Deus quem quis” ou “o universo conspirou para isto”. Da mesma forma como explicamos os ganhos, tendemos a buscar explicações não matemáticas para as perdas.
A morte é algo terrível, a maior de todas as perdas, embora seja inerente à vida. Viver é, em suma, correr risco de morrer. Morrer é um fato da vida! Mas pensar em desaparecer da terra num instante qualquer, deixar tudo e todos e seguir para o desconhecido – ou para um nada – é algo difícil de “digerir”. Portanto, é comum que os seres humanos empreendam buscas espirituais para encontrar uma explicação plausível e compreender melhor o início e o fim da vida, assim como os fenômenos que acontecem entre um e outro.
Porém, quando somos mais jovens, a sensação de que tudo é muito rápido, as ocupações infindáveis do dia a dia, os montes de listas de objetivos de vida a serem alcançados, e toda a movimentação corporal e intelectual que vivemos tende a nos distrair de pensamentos mais profundos. Mesmo frequentando cultos religiosos, o espaço destinado à reflexão espiritual fica raso. Também a percepção, enganosa, diga-se de passagem, de que viver-se-á muito ainda, não torna urgente planejar ou compreender o fim. Já dizia minha avó: “a juventude é uma dádiva”. Ela justificava esta frase pela habilidade jovial de resolver tarefas físicas rapidamente, sem pensar muito, às vezes até de maneira insensata. Gostava de nos contar como era complexa, por exemplo, a tarefa de cuidar de bebês. Segundo ela, uma jovem mãe recente estaria longe de pensar que corre risco de falecer amanhã e seu bebê não ser amamentado. Ela simplesmente o amamenta, o nina, dorme com ele porque está cansada, dá banho, troca milhões de fraldas, lava roupas, se preocupa com a comida dos adultos e segue a vida. É muito operacional, quase selvagem, como um parto natural, é instinto. Minha avó e muitas das minhas pacientes idosas explicaram-me sobre a beleza de estar, pelo menos em teoria, mais próxima da vida do que da morte.
Mas ao envelhecermos, o tempo pode sobrar, a morte de outras pessoas nos aproxima da necessidade de refletir. Até mesmo amigos queridos, companheiros de décadas e décadas, se vão de repente. Já por volta dos 50 anos começamos a observar as transformações na vida dos nossos próprios pais e tios idosos, alguns já se tornando mais frágeis e dependentes de cuidado. Como diria a minha avó, é como se estivéssemos iniciando um trajeto de maior proximidade do fim. Ela não considerava uma dádiva sentir-se mais próxima deste fim. Muitos dos meus pacientes idosos também não cogitam isso. Em geral, as pessoas idosas sentem medo do desconhecido. E, então, tentam conhecer mais.
As religiões podem explicar de maneira mais simples o sentido do curso de vida, oferecendo conceitos como céu, inferno, purgatório, reencarnação e ressurreição. E, na ânsia do encontro com o mais fácil, mais palatável, muitos abandonam os questionamentos internos da juventude e se convertem. Não há problema nenhum nisto. Aliás, é muito apaziguador para a mente conseguir confiar plenamente naquilo que não é visto nem tocado. Isto se chama fé. E há inúmeros benefícios de ter fé. Porque pessoas com fé costumam acreditar piamente em algo bom. Nem que seja na própria capacidade. E observo que, na maioria das vezes, algo bom realmente acontece, nem que seja apenas sentir-se em paz. Vale, então, explicar o sentido de ter fé, encontrado, na maioria das vezes, nestas buscas espirituais que não necessariamente tem a ver com alguma religião específica. Guimarães e Avezum, ambos médicos do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, escreveram um artigo de revisão, publicado em 2007, onde descrevem o conceito de espiritualidade como uma propensão humana a buscar significado para a vida por meio de conceitos que transcendem o tangível. Descrevem como um sentido de conexão com algo maior que si próprio, que pode ou não incluir uma participação religiosa formal. Ou seja, mesmo quem afirma não ter uma religião definida, empreende buscas espirituais, muitas vezes encontrando alguma resposta em campos específicos dentro de mais de uma religião.
Eu, por exemplo, tenho o hábito de ler a Bíblia Sagrada Católica. Gosto muito das lições do Novo Testamento, mas costumo ler Salmos e Provérbios com frequência também. Cresci em meio a missas de domingo, catequese e retiros religiosos para jovens. Entretanto, ao me tornar adulta, já passei por várias religiões e tornei-me algo que chamo, de maneira humorística, de “religiosa híbrida”. Ao trabalhar com a área de cuidados paliativos e acompanhar pessoas no fim de suas vidas, desenvolvi a compreensão de que a fé realmente é um sustentáculo importante para o enfrentamento da velhice e da morte. E para ter fé não é preciso ter religião definida.
As pessoas idosas precisam, portanto, viver estas buscas espirituais. É necessário ampliar o olhar sobre o concreto de um coração batendo e de um coração parado, um corpo quente e um cadáver. Precisam ir além da substância pragmática envolvida com o preparo das cerimônias fúnebres, com a despedida de entes queridos e com o dia a dia seguindo sem mais as presenças destes seres. Da mesma forma como é necessário lidar com a continuidade da vida dos que ficam após a nossa própria partida. Aceitar que eles irão, inevitavelmente, continuar sem nós e que, com o tempo, vamos virar apenas lembranças do passado. A fé, qualquer que seja, em um sentido para tudo isto, proporciona um conforto emocional impressionante no fim da vida e facilita o desapego necessário para partir.
Todas as reflexões sobre os que vão e os que ficam representam uma profunda sobrecarga psíquica, da qual algumas pessoas tem dificuldade de emergir. O luto pode ser prolongado e adoecedor para alguns. O luto pela própria morte é vivido pelos que sabem que tem pouco tempo de vida. O suporte espiritual acolhe a nossa angústia pelo desaparecimento inerente à morte, que aumenta à medida que envelhecemos. Na minha concepção, as respostas das buscas espirituais vão muito além das respostas científicas e filosóficas porque interferem justamente na nossa fé. E, como diria a incrível personagem do livro de Lucy Maud Montgomery, Anne (de Anne with “E”): “não sei o que haverá depois da curva, mas vamos acreditar que é algo bom”. É preciso ter fé na vida e na morte.
Comentarios