MAI 29, 2022
Mariza Tavares - Bem Estar. Confira matéria original aqui.
Nélida Piñon acaba de completar 85 anos em plena atividade e sai em defesa de seus companheiros de ofício
“Na literatura, estamos assistindo ao envelhecimento estético por conta da idade do corpo do autor. Escritores com uma obra canônica consagrada estão sendo ignorados, postos à margem, por não pertencerem mais ao mercado da beleza e da estética”. Quem denuncia um quadro de etarismo, isto é, de preconceito contra os idosos na cena literária, é a imortal Nélida Pinõn, que, em plena atividade, em momento algum legisla em causa própria. Na verdade, toma a defesa de companheiros de ofício que, na sua avaliação, vêm sendo marginalizados: “os jovens só leem o que produzem. Não aprendem com os mais velhos. E digo isso na condição de escritora que está produzindo e sendo lida”, sentencia.
A escritora Nélida Piñon, ocupante da cadeira 30 da Academia Brasileira de Letras — Foto: Divulgação Ela acabou de fazer 85 anos e, mesmo com sérios problemas de visão, consegue manter um ritmo de trabalho impressionante. Em 2020, lançou o romance “Um dia chegarei a Sagres” e finaliza um novo livro, que reúne memórias, pensamentos e reflexões. Além disso, tem um de ensaios em preparação. Sua editora relançou, no ano passado, o premiado “Vozes do deserto”, que li tomada por uma profunda angústia ao me deparar com a história de Sherazade sem retoques: Nélida apresenta a encantadora narradora dos contos das mil e uma noites da nossa infância como uma sobrevivente que, estuprada todas as noites pelo califa, sente que suas forças estão no fim e que talvez não consiga atravessar mais uma madrugada. Essa escrita potente continua sendo traduzida em diversos países e, em junho, haverá o relançamento de “A casa da paixão”, obra que completa 50 anos e poderá ser novamente degustada pelo público. Em novembro, será a vez de “Tebas do meu coração”, outro romance da década de 1970. “Por que minhas forças intelectuais não estariam avivadas se, durante a vida inteira, não fiz outra coisa a não ser pensar? Eu acordo criando” Explica que usa um aplicativo no celular para gravar as ideias que lhe vêm à cabeça no começo do dia. Resiste com todas as forças aos limites impostos pela visão depauperada: escreveu “Um dia chegarei a Sagres” à mão e depois uma assistente passou o texto para o computador. Para terminar o novo livro, também conta com ajuda: “duas vezes por semana, me reúno com a professora Fernanda Gentil e trabalhamos durante seis ou sete horas. Ela vai lendo os textos e cubro o rosto com as mãos para ouvir com o máximo de atenção e fazer as correções. Frase boa não se joga fora, todas nascem de um esforço criativo e as respeito, podem ser usadas mais adiante. Num caderno guardo o nome e o número de cada história, com anotações: se deve ser relida, descartada ou guardada para uma outra obra”, detalha. Talvez o segredo para tanta vitalidade venha da curiosidade que a acompanha desde menina: “sempre fui apaixonada pela vida e pelas pessoas. Foram abertas picadas no meu coração por onde passaram amigos de muitos países. Prefiro acreditar no afeto, não começar nenhum relacionamento com desconfiança”, discorre. E complementa: “é preciso acrescentar o que está faltando ao nosso acervo, e isso ocorre até a morte”. Diz que as banalidades também a atraem, tanto que costuma navegar no YouTube: “quero ser surpreendida pela estética alheia, ainda que no final não me agrade. A rotina do cotidiano é extraordinária, mostra como a vida é pródiga”.
Ocupante da cadeira 30 da Academia Brasileira de Letras, traduzida em mais de 20 países e vencedora de dezenas de prêmios, nacionais e internacionais, Nélida compartilha uma sensação que a acompanha há cerca de um mês: “tenho pensado em mim como quem morreu. É como se tivesse saído de mim e agora pudesse observar a história dessa mulher, de forma crítica e imparcial. E a Nélida que observa a outra pergunta: ‘essa mulher foi importante?’. Sim, ela construiu algo, deixou um legado. Exerceu uma resistência amorosa e tenaz que, nesses 60 anos de ofício, rechaçou tudo o que a impedia de escrever”. Trata-se de uma referência ao machismo no próprio meio literário, que ilustra com um episódio: convidada por um crítico para um almoço, ao chegar ele a conduziu para a sala onde estavam as esposas, e não os escritores. Sobre o feminismo, lembra que houve conquistas soberbas e sofridas: “as mulheres não querem ser princesas, nem rainhas do lar, e sim viver sua soberania em condições de igualdade com os homens, mas atualmente vejo um retrocesso. As que expõem e vendem seus corpos, pensando que são senhoras desse privilégio, na verdade estão fazendo o que se espera de uma mulher humilhada, submetida”.
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