JUL 15, 2022
Unifor - G1. Confira matéria original aqui.
Pesquisador português fala sobre a carreira de cientista e as atividades de promoção da saúde na terceira idade
O professor da Universidade de Coimbra participou de palestra sobre o tema na Universidade de Fortaleza — Foto: arquivo pessoal
Os cuidados da ciência para o envelhecimento ativo
A Vice-Reitoria de Pesquisa (VRP) da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, recebeu o pesquisador João Malva para a palestra “Ageing@Coimbra – Referência Europeia em Inovação para o Envelhecimento Ativo e Saudável” no início deste mês de julho. Neurocientista, autor de mais de 170 artigos e vários capítulos de livros, o convidado é coordenador da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), em Portugal.
Voltado para estudantes do Centro de Ciências da Saúde (CCS), o evento trouxe perspectivas esclarecedoras sobre a atuação da medicina no processo do cuidado aos idosos; em especial as experiências em Portugal, país que é referência no desenvolvimento de boas práticas na área do envelhecimento ativo e saudável. Para ir mais a fundo sobre o tema, o Entrevista Nota 10 aproveitou a oportunidade e conversou com João Malva sobre sua carreira na ciência e as pesquisas que realizara sobre promoção da saúde na terceira idade. Doutor em Biologia Celular, com habilitação em Biomedicina, João Malva coordena o consórcio “Ageing@Coimbra”, Centro de Referência Europeu para o Envelhecimento Ativo e Saudável. Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências (2007-2011) e coordenou projetos que incluem o “Teaming para o Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento” (MIA-Portugal), o “ERA Chair” na Universidade de Coimbra (ERA@UC) e a escola europeia de doutoramento em envelhecimento (EIT Health Ageing PhD School), entre outros.
“Os médicos de amanhã deverão ser conselheiros de saúde, deverão estar preparados para o diagnóstico precoce da doença e para o tratamento atempado da doença”, ressalta o pesquisador. Abaixo, leia a entrevista na íntegra.
Entrevista Nota 10 - Professor, poderia nos contar um pouco sobre sua carreira como pesquisador? De onde surgiu o interesse em estudar sobre saúde do idoso?
João Malva - Desde muito jovem alimentei o sonho de cruzar fronteiras do conhecimento. Primeiro queria ser piloto aviador e astronauta. Depois desci à Terra e, afinal, descobri a beleza do mundo em que vivemos. O meu gosto pela natureza e pela vida levou-me a querer ser biólogo. Formei-me em Biologia na Universidade de Coimbra e enveredei pela pesquisa em Biologia Celular. O estudo dos mecanismos celulares e moleculares da comunicação no cérebro levou-me a estudar neurociências. Foi com a investigação em neurociências que concluí o meu doutoramento na Universidade de Coimbra e iniciei a carreira como professor universitário na Universidade do Minho, em Portugal. Mais recentemente, como pesquisador coordenador e responsável pelo Gabinete de Gestão de Projetos na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, aproximei a minha investigação da temática do envelhecimento. Para isto, contribuíram dois processos importantes: por um lado, um dos temas de investigação que me é bastante caro tem a ver com as doenças neurodegenerativas relacionadas com o envelhecimento e que se cruzam com o estudo da neuroinflamação e das células tronco do cérebro. Por outro lado, a problemática das alterações demográficas e do envelhecimento das populações passou a ser uma prioridade para a Comissão Europeia e é um fenômeno com enorme impacto sócio-econômico em Portugal.
Com o aumento do número de pessoas mais velhas e a diminuição do número de jovens, vivemos novos desafios tanto no domínio individual, como das famílias, como dos territórios. Temos um problema central. Os nossos cidadãos mais velhos sofrem de muitas doenças, por vezes muitas doenças em simultâneo, por vezes muito incapacitantes... doenças que roubam recursos e que tiram a dignidade das pessoas. Muitas destas doenças estão relacionadas com os estilos de vida errados que se acumulam ao longo de uma vida. O normal é envelhecer em saúde, não envelhecer com doença. Temos que mudar o paradigma... educar os cidadãos para viver em saúde. Não basta aumentar a longevidade e dar mais anos à vida. É, sobretudo, necessário dar mais vida aos anos que temos para viver. Entrevista Nota 10 - Como as pesquisas da neurociência dialogam com a temática do envelhecimento?
João Malva - Como referi, as doenças do cérebro relacionadas com o envelhecimento são muito importantes para mim. O cérebro humano é o sistema biológico mais complexo do universo, nos limites do nosso entendimento. O número de neurônios que formam o nosso cérebro e a complexa rede de comunicação que liga todas as células tem uma complexidade cósmica. O estudo do cérebro é seguramente a última fronteira do conhecimento da fisiologia humana. Ainda temos muito para aprender sobre o funcionamento do cérebro.
Esta incapacidade de entendermos plenamente o funcionamento do cérebro tem implicações para o insuficiente tratamento das doenças que afetam o sistema nervoso. Por outro lado, o cérebro é a central de comando de todo o corpo e dá o substrato fisiológico para o processamento de atividade neuronal que entendemos como mente e que nos alimenta a consciência.
Quando o cérebro e a mente falham, todo o corpo e a nossa própria identidade ficam fragilizados. Este é o caso das doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, que afetam o cérebro e nos roubam as memórias, que são a unidade do conhecimento. E as memórias transportam a essência da nossa identidade e consciência, ”do eu”, e do nosso entendimento do mundo, “onde estou”. Quando o envelhecimento patológico nos leva as memórias, leva a essência de nós. Leva a dignidade da condição humana. Por isso é tão importante para mim contribuir com novo conhecimento e sensibilidade da sociedade para esta problemática. O entendimento do cérebro, especialmente o entendimento do cérebro doente no envelhecimento, tem um enorme potencial para ajudar a humanidade a ser mais humana, mais coesa entre gerações e em pleno respeito pelos indivíduos de qualquer idade, de qualquer condição.
Entrevista Nota 10 - O que é o consórcio “Ageing@Coimbra”? Pode nos dar alguns exemplos de resultados bem-sucedidos?
João Malva - O consórcio Ageing@Coimbra resulta da inquietude de um conjunto de parceiros que assumiram a saúde e o envelhecimento como área estratégica de investigação e intervenção social na região centro de Portugal. É um consórcio que nasce da iniciativa dos indivíduos e envolve as instituições, de baixo para cima. O Ageing@Coimbra procura ter uma abordagem holística sobre a investigação e intervenção.
Procuramos abordar a intervenção do consórcio tomando partido da colaboração entre várias áreas do conhecimento, quebrando barreiras temáticas e alimentado interdisciplinaridade e inovação. É um consórcio que se estrutura e alinha os eixos de uma hélice quádrupla colaborativa. Na verdade, é uma verdadeira rede colaborativa de inovação fundada na investigação e conhecimento, na inovação e empreendedorismo, nos cuidados de saúde e cuidados sociais, que junta autoridades de governo e gestão territorial, e que envolve os cidadãos e cidades. O Ageing@Coimbra foi fundado em resposta ao desafio lançado pela Comissão Europeia, em 2013, para identificar Centros Europeus de Referência para o envelhecimento ativo e saudável. A Universidade de Coimbra, o Instituto Pedro Nunes, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a Administração de Saúde do Centro, e o Município de Coimbra assinaram um memorando de entendimento que envolveu posteriormente a autoridade de gestão do território do Centro de Portugal (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro), a Escola Superior de Enfermagem de Coimbra e a Cáritas Diocesana de Coimbra. Este movimento estendeu-se pela região centro e envolve no presente mais de noventa entidades que trabalham em rede. Esta rede colaborativa cria, implementa, e replica boas práticas inovadoras que suportam a vida saudável e o envelhecimento ativo. É uma rede que cria laços regionais mas que se liga a outras redes na Europa, contribuindo para replicar em larga escala as melhores práticas e capitaliza várias oportunidades de financiamento europeu, através do programa Horizonte 2020 e Horizonte Europa.
A distinção que a Comissão Europeia atribuiu ao Ageing@Coimbra como primeiro Centro Europeu de Referência para o Envelhecimento Ativo e Saudável em Portugal (em 2013), permitiu inspirar outras regiões em Portugal, e na Europa, que se basearam no seu modelo inovador. Este, que se constitui como um ecossistema de inovação, conseguiu atrair financiamento de várias dezenas de milhões de euros para projetos tão emblemáticos como a criação do Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento em Coimbra (MIA-Portugal), a contratação de um grupo europeu de referência para o estudo do envelhecimento (ERA Chair), um projeto twinning para mobilidade de cientistas e estudantes, um laboratório colaborativo financiado pela agência de financiamento portuguesa (FCT), a coordenação da Escola Europeia de Doutoramento em Envelhecimento (EIT Health Ageing PhD School), a entrada como parceiro nuclear na Comunidade da Inovação e Conhecimento (KIC) em Saúde e Envelhecimento (EIT Health), entre muitos outros projetos de investigação e ação na sociedade. Entrevista Nota 10 - Como a prática da medicina e dos serviços de saúde em Portugal se diferenciam dos brasileiros na prevenção de doenças em idosos?
João Malva - Não conheço bem a realidade do sistema de saúde brasileiro para me poder pronunciar com propriedade. Prefiro responder com destaque ao meu conhecimento sobre a realidade portuguesa. Em Portugal, depois da transição do país para o regime democrático, foi criado um sistema nacional de saúde público e tendencialmente gratuito acessível a todos os cidadãos; o Sistema Nacional de Saúde (SNS).
O SNS evoluiu a par de uma profunda transformação social em Portugal. Em 50 anos Portugal passou de um regime fechado e ditatorial para uma democracia madura e plenamente integrada na União Europeia. Os portugueses são agora mais cultos e cosmopolitas. Portugal passou de uma matriz social muito rural e economia local para uma matriz mais urbana e economia global. Esta transição também se reflete e irá refletir na saúde dos portugueses.
O SNS dá resposta de saúde a uma sociedade em acelerado envelhecimento. Predominam os cuidados primários e cuidados hospitalares de resposta mais ou menos diferenciada à doença. A rede de cuidados em saúde não se articula bem com a rede de cuidados sociais. Teremos, forçosamente, que adaptar a nossa rede de cuidados e evoluir para uma melhor integração e cuidados, entre especialidades médicas, mas também entre o apoio de saúde e o apoio social. Ainda vivemos com um sistema criado no contexto da transição a que me referi, mas é urgente evoluir para outro modelo baseado na integração de cuidados. Além disso, há uma consciência crescente em relação ao valor da educação em saúde da população e às práticas de prevenção da doença e promoção de estilos de vida saudáveis. Ainda temos um sistema baseado na reação e não tanto na prevenção. Entrevista Nota 10 - De acordo com a Opas, em 2030, uma em cada 6 pessoas terá 60 anos ou mais. Em que parcela o conceito de Envelhecimento Ativo proposto em 2002 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) depende também do empenho de cada cidadão, enquanto agente da sua própria saúde?
João Malva - Temos a consciência que cada um de nós é o melhor gestor da sua saúde. Cada cidadão pode decidir sobre as atividades de vida diária e escolher enquadramentos que facilitam a saúde ou que abrem caminho à doença. Sabemos que as condições de saúde crónica nos idosos são em grande parte (pelo menos até 40%) dependentes de estilos de vida, e por isso, evitáveis.
Sabemos hoje que fenômenos como o desenvolvimento das redes de neurónios, a plasticidade neuronal associada a essas redes, a formação de novos neurónios a partir de células tronco em áreas cerebrais importantes para o processamento da memória (por exemplo hipocampo), ou que o controlo da neuroinflamação crónica são moldados por práticas da vida diária como o exercício físico, a alimentação saudável, a curiosidade intelectual, a socialização, boa harmonia com o ambiente, a felicidade, entre outras.
Uma boa saúde do cérebro, ao longo de toda a vida, contribui para a criação de uma boa reserva cognitiva que nos é muito útil para lidar com as fragilidades que podem surgir com a idade avançada. Ou, por outro lado, a adoção reiterada de estilos de vida inadequados pode fragilizar as redes neuronais e abrir espaço para maior impacto das doenças relacionadas com o envelhecimento. A mesma dinâmica de harmonia entre o corpo, o cérebro e o ambiente é válida para todos os órgãos e sistemas do corpo humano, favorecendo a saúde ao longo de toda a vida, ou abrindo espaço para a entrada da doença crónica. É por isso muito importante fazer uma aposta clara na promoção da saúde e na prevenção da doença. Isso deve ser feito através de forte apoio político e de práticas de literacia em saúde junto da população, começando nas crianças, mas educando todas as gerações.
A saúde dos velhos de amanhã começa na educação para os estilos de vida das crianças, agora!
Entrevista Nota 10 - Em suas palavras, no que consiste um envelhecimento “ativo” e saudável? De que forma nós, como sociedade, estamos comprometidos com esse conceito? João Malva - O envelhecimento ativo e saudável é uma designação que contém alguns problemas na sua origem. Não podemos partir do princípio que a saúde e os estilos de vida se controlam exclusivamente na idade mais avançada. Quem já chega a idoso carregado de doença dificilmente consegue reverter os processos estabelecidos com adaptações ao estilo de vida.
Prefiro o conceito associado à promoção da vida saudável e do envelhecimento ativo. É fundamental promover a saúde todos os dias da nossa vida, de maneira holística e em harmonia com o meio físico e social que nos rodeia; garantindo assim que quando chegamos a idade mais avançada somos saudáveis, continuamos plenamente ativos, integrados e comprometidos com a vida. Estou convencido que os cidadãos devidamente educados para a cidadania, a cultura e o respeito pela vida e pelo ambiente estarão melhor preparados para tomar as decisões certas que protegem a sua saúde e lhes podem oferecer uma vida longeva e saudável.
Entrevista Nota 10 - Por que os estudantes de medicina devem ter interesse em estudar sobre envelhecimento?
João Malva - Os estudantes de medicina de hoje irão tratar da saúde dos nossos cidadãos de amanhã. É importante considerar as questões que abordei e que se prendem, com as alterações demográficas, o envelhecimento das populações, a prevalência das doenças crónicas relacionadas com o envelhecimento e a necessidade de alterarmos o paradigma médico da reação para a prevenção.
Os médicos de amanhã deverão ser conselheiros de saúde, deverão estar preparados para o diagnóstico precoce da doença e para o tratamento atempado da doença. A complexidade das múltiplas condições crônicas de doença deve passar a ser a exceção e não a regra. Só esta alteração de visão nos pode permitir assegurar a viabilidade económica das redes de apoio social e de saúde, acessíveis a todos os cidadãos.
Os futuros médicos serão, sem dúvida, os melhores embaixadores desta revolução e o garante da sua prática.
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