AGO 21, 2022
Lucas Reckziegel - Conjur. Confira matéria original aqui.
Em 1970, Simone de Beauvoir, com o texto A Velhice, realiza uma crítica contundente às percepções socializadas sobre a pessoa idosa, que é encarada como "um outro". Refere Beauvoir que:
"se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam; [...] Devem dar exemplo de todas as virtudes. Antes de tudo, exige-se deles a serenidade [...]. A imagem sublimada deles mesmos que lhes é proposta é a do Sábio aureolado de cabelos brancos, rico de experiência e venerável, que domina de muito alto a condição humana; se dela se afastam, caem no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam. De qualquer maneira, por sua virtude ou por sua abjeção, os velhos situam-se fora da humanidade. [...]. Levamos tão longe este ostracismo que chegamos a volta-lo contra nós mesmos; recusamo-nos a nos reconhecer no velho que seremos" [1].
A incisiva observação apresentada pela autora encontra-se com o histórico etarista que impregna, no caso do Direito, o vocábulo instrumentalizado em regimes jurídico-políticos envoltos a pessoa idosa, sendo um sintoma, portanto, do reconhecimento difuso, e particularizado, das "características" — discriminatórias — do que se tem como pessoa idosa.
Não é diferente, a propósito, o que afigura-se na Constituição de 1988, que avança, indubitavelmente, na criação de possibilidades normativas humanizadas e reflexivas, com um regime de proteção integral (família — sociedade — Estado), muito embora atrelando-se com o passado, quando, no artigo 230, registra o "dever de amparo" [2], que, por sua vez, é tributário da formação, na constituinte, da subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, no título único de "Amparo à Velhice", local em que a sociedade organizada pôde se manifestar [3].
Há, nessa onda constitucionalizante de 1988, o fundamento de proteção da pessoa idosa vulnerabilizada [4], e a tentativa de quebra com a tradição normativa do país, com teores patrimonialistas, e, de prioritariamente, abarcar a atuação do Estado, e da sociedade, nessas esferas, com um olhar unicamente oriundo de um sistema de seguridade social — que é, por óbvio, um mínimo hipócrita e paradoxal das sociedades capitalistas.
Importa sublinhar que, o direito humano e fundamental ao envelhecimento digno se afasta, normativamente, de um horizonte vinculado, restritamente, à locução de proteção à pessoa idosa — ou de amparo. O direito ao envelhecimento digno aliança-se com a proteção ao idoso vulnerabilizado, mas, simultaneamente, visa evoluir, comunicativamente, a sua paragem, pois reivindica uma atuação da própria formação estrutural do Estado e da sociedade, voltada para todo o processo de vida das pessoas, em sua projeção e desenvolvimento, no sentido de que, a "proteção" a pessoa idosa vulnerável [5] não seja o escopo predominante de sua normatividade e, igualmente, não influa, de maneira uniforme, as políticas governamentais, ou aquelas que se queiram de Estado (risco a um norte etarista).
No cenário internacional, para ficar em poucos atos, pode-se recordar da movimentação da Organização das Nações Unidas (ONU), com o Plano de Ação Internacional de Viena sobre o Envelhecimento [6] [7], de 1982, aprovado em Assembleia, convocada em 1978, pela Resolução 37/51 [8], inaugurando-se, no plano internacional, uma comunicação jurídico-política de concerto com os demais tratados internacionais, com temáticas de Direitos Humanos atreladas ao envelhecimento e a pessoa idosa, igualmente parametrizadas com outros eixos normativos, a saber, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1949 [9], e com a Declaration on Social Progress and Development [10], de 1969.
É dessa tradição, por mais, que, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 14 de dezembro de 1990, com a Resolução 45/106, designou o dia de primeiro de outubro, como o Dia Mundial do Idoso. Em 1991, a mesma Organização Internacional, com a Resolução 46/91, adotou a Carta de Principles for Older Persons [11]. Em 2002, na Segunda Assembleia Mundial do Envelhecimento, ficou afirmado o Madrid International Plan of Action on Ageing [12], "to respond to the opportunities and challenges of population ageing in the 21st century and to promote the development of a society of all ages" [13]. O espírito normativo, que transcende o texto internacional citado, encontra-se na redação do artigo 6º, que segue, parcialmente, copiada, "[...] When ageing is embraced as an achievement, the reliance on human skills, experiences and resources of the higher age groups is naturally recognized as an asset in the growth of mature, fully integrated, humane societies" [14].
Oportuno corroborar que, o movimento normativo de internacionalização, na região das Américas, tende a se imiscuir, em seu texto principal, a respeito do assunto. Com efeito, a Convenção Americana de Direitos Humanos [15], de 1969, não traz, explicitamente, uma aproximação sobre a questão, o que, por claro, não impede que se faça uma leitura, de suas prescrições, alocando-as, em um esforço reprodutivo, natural à normatividade da dogmática em questão, com um direito humano ao envelhecimento digno. Não obstante, o avanço histórico assim permitiu, em 2015, que essa lacuna fosse limitadamente preenchida, à evidência da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos (CIPDHI) [16] [17], a qual, a propósito, procura difundir e impelir aos Estados, um necessário cuidado com os desafios sociotécnicos, da digitalização e da massiva inserção das novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), para com os direitos humanos atrelados às pessoas idosas [18], e empregando-se a gramática relacionada ao "Envelhecimento ativo e saudável" (artigo 2º, definições).
Ainda em esfera Americana, não se olvida de outros instrumentos internacionais-regionais, tais como a Estratégia Regional de Implementação para a América Latina e o Caribe do Plano de Ação Internacional de Madri sobre o Envelhecimento [19], de 2003, a Declaração de Brasília [20], de 2007, bem como o Plano de Ação da Organização Pan-Americana da Saúde sobre a Saúde dos Idosos, conexo ao Envelhecimento Ativo e Saudável [21], de 2009, relacionando-se com a Declaração de Compromisso de Port of Spain [22] e, pois, com a Carta de San José sobre os direitos do idoso da América Latina e do Caribe [23].
Os referidos documentos, nacionais e internacionais, que não excluem outras cartilhas e diretivas, em sua "cronologia", vêm demonstrando uma preocupação com o desenvolvimento tecnológico, no caso, da computação-digitalização, para com um direito — em perene maturação — ao envelhecimento digno, superando-se uma abordagem (importante e necessária) gerontecnológica, tendo em vista as projeções da Organização Mundial da Saúde, e da Organização Pan-Americana da Saúde, na Década do Envelhecimento Saudável (2020-2030), de que o número de pessoas com 60 anos ou mais é para crescer em 38%, entre 2019 e 2030, significando um aumento global de 1 bilhão, para 1.4 bilhões [24].
Como aludido, a CIPDHI reforça esse horizonte, e, no que foi possível lançar, em outro momento, aqui na Conjur [25], o Constitucionalismo Digital, em vias conclusivas da constituinte chilena, no texto apresentado pela comissão, presentificado no artigo 33. 2 [26], há uma assemelhada projeção.
O ponto é: o direito humano e fundamental ao envelhecimento digno — como todo direito — possui uma normatividade historicamente problemática e de enfrentamento, muito em face da violência oriunda de escopos discriminatórios, entretanto, novos desafios, com a digitalização, estão sendo programados, seja em direção a circunstâncias clássicas, seja na produção de inéditas – tais como a exclusão epistemológica, linguística, de afeto, divisão e exclusão digital — para ficar somente nessas.
Nos PLs contemporaneamente em debate, e na idealização de políticas de desenvolvimento tecnológico no país, conexos ao paradigma da digitalização, o direito humano e fundamental ao envelhecimento digno necessita estar incluso, pois, no cenário constitucional brasileiro, faz-se impreterível alocar, e não olvidar, do que nos diz o seu texto normativo, no qual está predito que A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros [...] (artigo 218, §2º) e não para a criação, ampliação, ou multiplicação, de novos.
As camadas normativas dos Direitos Humanos e Fundamentais estão em ruído com a inserção massiva de tecnologias digitais e digitalizantes. O direito humano e fundamental ao envelhecimento digno, em sua complexidade, por bem há de se ampliar, para além de considerações conexas a ideia de smart eldercare.
[1] BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 8-9. [2] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm [3] BRASIL. Constituinte. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-214.pdf [4] BODIN DE MORAES, M. C.; TEIXEIRA, M.C.B. In: CANOTILHO, J.J.; FERREIRA MENDES, G.; SARLET, I. W.; STRECK, L.L.Comentários à Constituição do Brasil. E-book. São Paulo: Saraiva Jur, 2018 p. 3944. [5] MINAYO, Maria Cecília. Violência contra idosos: o avesso do respeito à experiência e à sabedoria. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2005, p. 15. remetendo à Política Nacional de Redução de Acidentes e Violências do Ministério da Saúde, de 2001, lista uma série de concepções que, à época, sobre o tema, se buscava prevenir a pessoas idosas vulnerabilizadas, tais como o abuso físico, psicológico, sexual, financeiro e econômico, o abandono, a negligência e a auto-negligência. [6] Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/ageing/documents/Resources/VIPEE-English.pdf. O também denominado Plano de Viena fora precedido pela movimentação, de 1973, sobre de Question of the Elderly and the Aged. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/660757?ln=en [7] Na abertura, o Diretor-Geral pelo Desenvolvimento e Cooperação Internacional, Jean Ripert, em fala representativa ao Secretário-Geral, pontuou que, "one of the important objectives for many developing countries was to extend life expectancy. That had a bearing on development, if the elderly were to be ensured a life of human dignity and decency. There was a need, therefore, to accelerate the development of the developing countries and to extend its benefits to all parts of the population. [...] Accordingly, what was needed was more equitable distribution of resources, both at the national and international levels" item 31, p. 9 [8] Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/ageing/documents/Resources/VIPEE-English.pdf [9] Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf artigo 25 [10] Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/progress.pdf — artigo 11. [11] Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/olderpersons.pdf [12] Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/documents/ageing/MIPAA/political-declaration-en.pdf [13] Disponível em: https://www.un.org/en/observances/older-persons-day [14] "Article 6. The modern world has unprecedented wealth and technological capacity and has presented extraordinary opportunities: to empower men and women to reach old age in better health and with more fully realized well-being; to seek the full inclusion and participation of older persons in societies; to enable older persons to contribute more effectively to their communities and to the development of their societies; and to steadily improve care and support for older persons as they need it. We recognize that concerted action is required to transform the opportunities and the quality of life of men and women as they age and to ensure the sustainability of their support systems, thus building the foundation for a society for all ages. When ageing is embraced as an achievement, the reliance on human skills, experiences and resources of the higher age groups is naturally recognized as an asset in the growth of mature, fully integrated, humane societies". [15] Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm [16] Disponível: https://www.oas.org/en/sare/documents/CIPM_POR.pdf [17] Em processo de internalização, a dita Convenção encontra-se em trâmite, no Projeto de Decreto Legislativo de Acordos, tratados ou atos internacionais de nº 867/2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2164910&ord=1 [18] Artigo 20, d; artigo 21, artigo 26, e. [19] Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/orgaos-subsidiarios/conferencia-regional-intergovernamental-envelhecimento-direitos-idosos-america [20] Disponível em: http://www.observatorionacionaldoidoso.fiocruz.br/biblioteca/_informes/11.pdf [21] Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_ativo.pdf [22] Disponível em: http://www.summit-americas.org/V_Summit/decl_comm_pos_pt.pdf [23] Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/21660/S2012839_pt.pdf?sequence=1&isAllowed=y [24] Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52902/OPASWBRAFPL20120_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y [25] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-10/lucas-weschenfelder-desenvolvimento-tecnologico-constituinte-chilena [26] "Artigo 33. 2. Asimismo, tienen derecho a envejecer con dignidade; a obtener prestaciones de seguridad social suficientes para una vida digna; a la acesibilidad al entorno físico, social, económico, cultural y digital; a la participación política y social; a una vida libre de maltrato por motivos de edad; a la autonomía e independência y al pleno ejercicio de su capacidade jurídica con los apoyos y salvaguardias que correspondan". Disponível em: Propuesta Constitución Política de la República de Chile. 2022. Disponível em: https://www.chileconvencion.cl/wp-content/uploads/2022/08/Texto-CPR-2022-entregado-al-Pdte-y-publicado-en-la-web-el-4-de-julio.pdf
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