OUT 11, 2022
Helena Degreas - JP. Confira matéria original aqui.
Enquanto países formulam índices de acessibilidade e inclusão, o governo opta pelo retrocesso
Dados do IBGE apontam que pessoas com mais de 60 anos representam cerca de 14,7%
Recentemente, fui surpreendida com a aprovação, pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), da Instrução Normativa nº 165 de 2022, que flexibiliza as regras para a utilização das salas de cinema brasileiras para pessoas com deficiência e também idosas. No Capítulo II, Art. 3º, §2º é possível ler que “o exibidor deverá dispor de suporte técnico que garanta a plena disponibilidade dos equipamentos e dos recursos de acessibilidade oferecidos, observado o princípio da adaptação razoável”. Depreende-se, portanto, que o dever do exibidor de acomodar é limitado pelo critério da razoabilidade, ou ainda, cabe a interpretação sobre questões relacionadas às custas da adaptação por um lado, e por outro, é possível questionar a aplicação dos direitos fundamentais de qualquer indivíduo de não ser discriminado por sua condição de mobilidade.
Enquanto o atual governo brasileiro escolhe o caminho da exclusão e da sistemática destruição dos princípios que regem a dignidade e direitos do ser humano, o governo espanhol, juntamente com a Fundación ONCE para la Cooperación e Inclusión Social de Personas con Discapacidad (@Fundacion_ONCE), associado à consultoria IdenCity, optaram pela elaboração de um relatório contendo um índice inédito que se propõe a mensurar a eficácia das metas propostas pelo programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030). O Índice de Acessibilidade e Inclusão é uma ferramenta que permite o acompanhamento do desempenho das cidades nas áreas que garantem ambientes urbanos e inclusivos. Seu conceito holístico e abrangente tem por objetivo avaliar a acessibilidade nas cidades espanholas por meio do acompanhamento do progresso da inclusão dos indicadores de desempenho que, a partir de agora, encontram-se padronizados e, portanto, comparáveis. Esta ação permite medir as melhorias e os retrocessos nas ações de governos.
O programa propõe tanto a reflexão quanto ações durante os próximos anos para acolher pessoas que estão em processo de envelhecimento e que necessitarão de adequações nas diversas dimensões que qualificam o bem-estar humano para que governos possam enfrentar uma transição demográfica que afetará quase todos os aspectos sociais. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que pessoas com mais de 60 anos representam cerca de 14,7% ou ainda, mais de 33 milhões de pessoas que em 2030 terão 70 anos. Em breve, encontraremos mais avós e menos netos. Estamos quase lá. Políticas públicas são formuladas a partir de posicionamentos construídos por dados apresentados em tabelas e gráficos, nos quais taxas, índices, e indicadores geram medidas que tendem a ter um significado próximo à realidade material. A partir de seus resultados, espera-se que políticos eleitos pela população abandonem os critérios construídos a partir do “achismo” e “sentimento pessoal” como instrumentos de avaliação e adotem indicadores precisos e informações concretas para compreender e trabalhar com tendências, contextos e realidades sociais.
A inclusão é entendida como a participação plena das pessoas idosas e daquelas que são deficientes, em todas as dimensões da vida urbana e política, garantindo que tenham acesso às oportunidades e aos recursos necessários para atuar nas esferas econômica, social, cultural, educacional, de lazer, educacionais e de trabalho no meio em que vivem, sem se sentirem excluídas ou prejudicadas nas atividades cotidianas. O estudo foi construído a partir de bases de dados estruturais e oficiais que fornecem estatísticas para a população em geral, acrescentando que a ausência de dados precisos, atualizados e desagregados constitui-se em problema para uso no índice de Inclusão e Acessibilidade levando, infelizmente, à invisibilidade dos grupos que mais são afetados pela inação do poder público na solução de suas demandas.
Mobilidade (transporte público, estacionamento e uso de veículos particulares), deslocamento de pedestres e infraestrutura, emprego (qualidade e inserção trabalhista), recreação (atividades culturais, esportivas, espaços públicos, incluindo as praias) , governança (gestão pública, governo aberto e acessível), serviços básicos de bem-estar (saúde, habitação, educação, segurança e justiça), hospitalidade (hotelaria e turismo) e comércio compõem os 93 indicadores distribuídos em 16 categorias, estruturadas em 6 dimensões e que compõem a esfera de vida pública de qualquer cidadão, seja ele mais velho ou com alguma deficiência física. Os pesquisadores responsáveis pela formulação partem do princípio de que a eficácia no atendimento de um ou outro indicador, por exemplo, é insuficiente para alcançar o bem-estar do cidadão. Estão corretíssimos. Cinco cidades já foram analisadas e, nelas, a despeito de todas as leis, regulamentações e normativas existentes, seus resultados apontam que ainda há muito o que se fazer para construir numa cidade para todes. O fato é que o Brasil, juntamente com países de todo o mundo, comprometeu-se a “não deixar ninguém para trás” ao assinar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, ou seja, incluir a todos independente de gênero, condição social, etnia ou idade em todas as esferas da vida cotidiana e pública. Precisamos cada vez mais cobrar de nossos governantes um papel firme na formulação de políticas que atendam a todos os cidadãos, garantindo condições de realização com dignidade e igualdade num ambiente adequado.
Se bem que, desculpem pelo desabafo, algumas competências que envolvam raciocínios numéricos, índices e taxas não são, como posso escrever aqui… “o forte” de boa parte daqueles que deveriam ter o domínio dos conhecimentos básicos minimamente necessários para compreender, interpretar e formular algumas poucas críticas e propostas coerentes para solucionar os problemas de caráter social e econômico que enfrentamos aqui por nossas terras. Ou ainda, saber ler informações obtidas em relatórios que apresentam estatísticas e apontam probabilidades é bem mais eficaz, embora mais demorado, do que culpar a divulgação de pesquisas eleitorais com números diferentes daqueles obtidos nas urnas. O projeto de lei que faz corar qualquer pesquisador foi apresentado no último dia 6 de outubro pela Câmara dos Deputados em Brasília. Sinto “vergonha alheia” como dizem por aí. Privilégios individuais concedidos a exibidores afrouxam direitos adquiridos de grupos vulneráveis, mostrando um Estado que se exime de seu papel de formulador de políticas que incorporem incentivos legais e fiscais para a adaptação de imóveis que prestam serviços de recreação e lazer aos cidadãos mais velhos e com deficiência. Tratar a questão da adaptação das salas de exibição como ônus, sobrecarga, problemão daquele que presta o serviço, assumindo que o tema deve ser discutido caso a caso, é inadmissível, um retrocesso digno daquele que, ocupando o Palácio do Planalto, não se mostra, depois de quase quatro longos anos, à altura do cargo que ocupa. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.
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