OUT 25, 2021
Patrícia Cassese - O Tempo. Confira matéria original aqui.
No trabalho, em casa ou no campo das amizades, é enriquecedora a troca de ideias e informações que a relação entre pessoas de diferentes idades permite.
Em "Um senhor estagiário", Jules Ostin (Anne Hathaway), uma criadora de um site bem sucedido de vendas de roupas, custa a aceitar que vai ter que lidar diretamente com um estagiário sênior, Ben Whittaker (Robert de Niro). Foto: Netflix
Atire a primeira pedra quem nunca ouviu, mesmo que eventualmente com outras palavras, a frase "a geração de hoje parece que já nasceu plugada nas novas tecnologias"? De fato, os mais jovens - em particular, a geração Z e a alfa - têm uma familiaridade com o mundo digital que impressiona. Mas, evidentemente, esse não é o único ponto que gera divergências com as gerações que os precederam. O mundo se transforma em uma velocidade surpreendente e, além da questão tecnológica, as mudanças se fazem sentir em outros campos, como o comportamental. Para citar um exemplo, até a década de 90, muitos ainda torciam o nariz para aqueles que uniam suas escovas de dentes sem o lastro que carateriza um enlace oficial: a tradicional cerimônia na igreja, com a noiva de branco, e os papéis protocolares sacramentados pelos cartórios. O casamento religioso, claro, segue em alta, mas não valida mais que os muitos casais que resolveram se unir "sem papel passado" sejam olhados de esguelha.
Em meio a esse moto contínuo, alguns partem para se reciclar, de modo a se comunicar com o novo tempo. Outros optam por permanecer estanques - o que, por vezes, acaba gerando o chamado gap geracional. Filmes e seriados são pródigos em tratar o tema - exemplo recente é "Hacks", que, aliás, rendeu o Emmy deste ano a Jean Smart, que, na série, representa a "velha geração" por meio da personagem Deborah Vance, uma ex-diva que atualmente vive de apresentar, em Las Vegas, um stand-up cujas piadas ela prefere não renovar. Ameaçada de ter o seu show interrompido, Deborah se vê forçada a conviver com a jovem roteirista Ava Daniels (Hannah Einbinder), que entra em cena cheia de frescor e ideias. Como ambas têm forte personalidade, o conflito não tarda a se instalar, até que percebem que uma tem muito a aprender com a outra. O sucesso foi tanto que a HBO Max já anunciou a segunda temporada. Outras tantas produções mostram o desajuste entre gerações por meio da relação pai e filho: caso de "A Música da Minha Vida", no qual o filho tem que lidar com os costumes ortodoxos do pai. Em outros, comportamentos comumente associados a filhos são adotados por um dos genitores, como em "Tal Mãe, Tal Filha", no qual a segunda - Avril (Camille Cottin), tem que dar conta da primeira, Mado (Juliette Binoche).
No caso desta intrincada relação, a estabelecida por pais e filhos, a psicopedagoga, psicanalista e neurocientista Ângela Mathylde entende que, na maioria das vezes, o que segura o conflito geracional são os laços afetivas e as relações de interação. "E o que são relações afetivas? São as de afeto, admiração, respeito e interação entre as funções pais e filho. Já as de interação, são as de rotina, como da importância que eu represento para esse filho. Não podemos descaracterizar a importância desses personagens na nossa vida: pai e mãe sempre serão estruturantes", advoga.
Para Ângela, é necessário que o filho tenha noção da hierarquia, mas não no sentido de um outro cerceador, e, sim, apto a repassar orientações e a se tornar um referencial na estruturação desse ser em construção. De toda forma, ela acredita sim, em uma possível convivência familiar harmoniosa. E aconselha que a geração que veio antes evite querer impor seus costumes, o que pode desaguar em grandes conflitos. "Não é necessário ficar nesta guerra: 'eu mando, você não manda, eu que sustento'". Já para a nova geração, diz ela, é importante que o respeito seja resguardado. Um conselho, diz, é uma geração convocar a outra "no sentido de que caminhem juntas, com respeito".
O professor Marcio Vasconcellos é um exemplo de que a convivência harmônica e respeitosa é possível. No relacionamento com a filha, 24 anos mais nova, ele diz aprender muito. "Considero essa geração muito mais atenta em relação ao respeito com o outro, à diversidade, a pautas que dizem respeito ao combate de preconceitos ainda estruturalmente sentidos. Nas questões de gênero, por exemplo, aprendo muito com ela", admite. Ele também acrescenta que, por não ter interesse em se conectar digitalmente, nem mesmo para manter redes sociais, as quais abomina, a filha acaba sendo uma fonte recorrente para se atualizar, por exemplo, sobre os debates e polêmicas em voga.
Aos 28 anos, Luciana Coutinho conta que conversa com seus pais sobre vários assuntos. "Porém, é possível identificar alguns gaps que criam até mesmo situações de estresse". O assunto carreira, por exemplo, é um tema sensível. Ela lembra que, tempos atrás, passar em concursos públicos era uma espécie de meca, assim como ficar anos na mesma empresa. "No momento que comentei que queria procurar um emprego novo foi um mini choque, pois estava em uma empresa consolidada há décadas. Expliquei que, hoje, o mercado nem sempre vê com bons olhos quem fica muito tempo no mesmo lugar, e, além disso, eu não queria ser especialista no produto relacionado a essa empresa".
Passados seis meses na nova empresa, Luciana foi promovida. "Imagino que agora eles entendam que eu precisava tomar aquela atitude. Obtive um crescimento profissional rápido e, ainda assim, consistente". Luciana elenca outros assuntos "polêmicos": "Sexualidade, gênero, aborto, religião, entre outros". Mas ressalva: "Por vezes, são assuntos polêmicos até mesmo entre pessoas da mesma geração".
Transmissão de saberes e histórias
Atriz, contadora de histórias e integrante do coletivo Iabás, Chica Reis cita o pensador malinês Amadou Hampâté Bâ (1901-1991), que cravou uma frase epistolar: "Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima", para falar sobre o respeito que devemos devotar aos que vieram antes, às gerações que nos precederam. No último dia 16, Chica e suas colegas do Iabás participaram do 4° Edição do Encontro Negro de Contadores de Histórias - Embondeiro 2021, no qual os saberes ancestrais são um dos pilares, com uma reverência particular às matriarcas da Pedreira Prado Lopes. "Também sou contadora de histórias solo e, seja no coletivo ou individualmente, a preocupação é a contação de histórias afro-diaspórica, afrodescendente, afrocentrada, com um olhar muito carinhoso para as mulheres, para as energias femininas. E para pensar neste campo da contação das histórias a gente está pensando em duas coisas: a oralidade, que é essa transmissão da palavra, das histórias, através das gerações; e em um princípio civilizatório muito importante que é a senioridade. Esse reverenciar o mais velho a gente faz através da contação de histórias, já que sabe que, muitas vezes, são narrativas que atravessaram o mar. De qualquer forma, só chegaram até nós porque foram passadas de boca a boca, de corpo a corpo, de ouvido a ouvido. E na maioria das vezes existia um mais velho para contar essa história, Essa é a roda da humanidade, e eu não posso me desvincular do mais velho assim como não posso me desvincular do mais novo".
Aos 49 anos, Chica avalia que precisa estar muito tranquila para o que virá. "Para os cabelos brancos, para a pele flácida. Veja, não estou criticando quem faz qualquer intervenção cirúrgica ou estética, mas também a gente não pode desconsiderar que a não valorização da velhice tem a ver com o modo de ser e estar no mundo capitalista, no qual somos produtos descartáveis, podendo ser substituídos por outros. Temos que entender que é isso que repetimos e pensamos, e compreender a importância desse círculo da vida, dessa gira que é a vida, do mais novo ao adolescente, ao adulto, ao mais velho. Sendo assim, tratá-los com muito respeito. Já que todos nós sabemos o que vem depois, inclusive para a gente pacificar a nossa relação com a morte".
A história, pontua ela, é esse lugar da roda ancestral, do respeito ao mais velho e aos saberes que ele traz. "Só se levanta para ensinar aquele que se sentou para aprender, ou seja, o que o traz a senioridade? Esse aprendizado e esse saber que vêm passando de geração em geração. Ele vem através dos mais velhos, que não são figuras descartáveis, não são produtos fora de linha. São pessoas que a gente tem que escutar, que a gente tem que validar, toda essa trajetória dessa pessoa que está pela Terra e que está ainda no seu caminhar, ela viu e viveu isso. É muito importante! O mais velho, ele aprendeu. Ele aprendeu com seu pai, que aprendeu com seu avô, que, por sua vez, aprendeu com seu bisavô, e assim surgiram os saberes, a ciência, a cultura. Se a gente pensar não só em África, mas aqui no Brasil, a cultura de resistência negra. As tradições negras, o que são se não falar desse mais velho ao mais novo? Por que ele sabe que vai morrer e esse conhecimento tem que prosseguir".
Chica observa: "Eu falo muito desse lugar dessa tradição das matrizes africanas, mas se a gente olhar um avô, uma avô, um pai ou uma mãe, eles têm muito a ensinar, e, apesar disso, muitas vezes, a nossa relação é de impaciência. 'Nossa, está contando de novo aquela história'. 'Nossa, lá vem ele de novo com aquelas coisas esquisitas. A gente vive numa sociedade de tempo corrido, na qual a juventude, esse valor do corpo jovem, essa beleza jovem, é forçadamente priorizado como algo a ser adquirido. Parece que existe uma luta contra a velhice. Contra esse lugar da senioridade", revolta-se.
Chica aponta que, para quem está nesse campo da senioridade como valor civilizatório, é facilmente compreensível a importância de ouvir o que o mais velho tem a dizer, uma vez que ele já desbravou um caminho. "Mas mesmo se esse mais velho não lhe traz informação, por respeito, é preciso ter paciência. Por que para onde os nossos jovens corpos caminham? Se existe o respeito aos mais velhos, o que a gente está dizendo a esse mundo capitalista? Que nós não somos produto, não somos descartáveis".
No campo do trabalho, convivência possível - e enriquecedora
No campo das relações de trabalho, é impossível não lembrar do filme "Um Senhor Estagiário", no qual Robert de Niro vive Ben Whittaker, um aposentado de 70 anos que mergulha na oportunidade de se tornar um estagiário sênior em um site de moda, comandado pela personagem de Anne Hathaway O que tinha tudo para dar errado acaba resultando numa bela parceria.
Para David Braga, CEO e headhunter da Prime Talent, é vital que as empresas estimulem e pratiquem a diversidade geracional, caso queiram de fato manter a perenidade em um mercado cada vez mais desafiador, "com problemas complexos a serem resolvidos e no qual cliente está cada vez mais exigente e necessitando de soluções além do óbvio". "Como conseguir isso? Tendo um time com idade e repertórios variados", diz ele, que também é professor convidado da Fundação Dom Cabral e autor do livro "Contratado ou Demitido - Só Depende de Você".
"Um dos grandes desafios das empresas é a promoção genuína de diversidade nos seus variados aspectos, incluindo de gerações (idades) e até mesmo de pensamento. Em estruturas cada vez mais enxutas, há um impulso à inovação ao trabalhar com times cada vez mais diversos, com pensamentos críticos e que questionam o status quo, ou seja, o modo como as coisas são feitas". No entanto, ele alerta que saber conviver nesse espaço diverso é fundamental, e completa falando que essa habilidade precisa começar a ser aprimorada e estimulada desde a infância, nos ambientes de casa e das escolas. "Profissionais de sucesso são exatamente aqueles que conseguem transitar em variados níveis hierárquicos, de pensamentos e até mesmo em meio a ideias divergentes".
Tratar a importância das gerações nas organizações, para ele, na verdade nem é um assunto novo, mas, por outro lado, David entende ser sempre importante ratificar. "Já que as empresas não podem optar apenas por uma geração, uma vez que todas contribuem, de alguma forma, para o seu desenvolvimento. Vale ressaltar que o 'jogo' não é mais o mesmo no ambiente corporativo. Nem sempre os profissionais de mais idade gerenciam os que têm menos idade. O importante é lembrar que todos juntos, de forma harmônica, entregarão os resultados". E emenda: "Para ser um profissional diferenciado é essencial saber expor ideias e opiniões, como também ouvir, ter empatia e, sobretudo, mente aberta para mudar, sempre que necessário, atuando em ambientes diversos, complexos e ambíguos".
David ressalta que as empresas mais estratégicas já entenderam a importância da diversidade geracional e têm procurado mesclar, em seu quadro de colaboradores, profissionais de idades e repertórios variados. "Há tempos diversas pesquisas já mostram que a melhor maneira de potencializar o business é justamente mesclando todas as gerações, apropriando-se dos pontos positivos de cada uma. Como diria Hillary Clinton, 'o que temos que fazer é encontrar uma maneira de celebrar a nossa diversidade e debater nossas diferenças, sem fraturar as nossas comunidades'”, finaliza.
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